"Tóquio era cheia de coisas que impressionavam Sanshiroo (...) O que mais o impressionava era Tóquio em si mesma, não importava o quão longe fosse, a cidade não terminava. (...) Tudo parecia que estava sendo destruído e, ao mesmo tempo, tudo parecia que estava em construção"
Tóquio nos recebeu com neve, a primeira do ano. O fuso horário maltratou um pouco durante as duas primeiras semanas, acordávamos muito cedo e às 21h já não nos aguentávamos em pé. Parecíamos dois fazendeiros. A referência é inevitável: Sofia Coppolla descreveu muito bem, sei agora, a sensação de desconexão causada pelo fuso-horário, na primeira metade de
Lost in Translation.
Dedicamos boa parte das energias nas duas primeiras semanas a buscar um apartamento. Estamos em um hotel bacana, a mudança ainda vai demorar uns dois meses para chegar, mas quanto antes pudermos ter uma rotina, melhor, ainda que essa rotina inclua acampar sem móveis. Já em março nos mudamos, mala, cuia, hachis e futon.
Tanta rapidez graças à assessoria de uma verdadeira lenda viva na repartição, Suzuki-san - a agente imobiliária mais doida do Japão. A mulher consegue dirigir, falar em dois celulares, conversar com os clientes, tomar notas, tudo ao mesmo tempo. Seria exigir demais que além disso ela também respeitasse as leis de trânsito.
Mas ela é também super competente, nos mostrou coisas excelentes. A crise econômica atingiu a comunidade de expatriados aqui em cheio, há muita coisa boa disponível a preços inimagináveis apenas dois anos atrás, sem prejudicar o orçamento.
Estamos quase fechando com um apartamento em Omotesando. Googlei o nome do edifício, na tentativa de localizar o endereço correto no Google Maps, e topei com um artigo do The Guardian de 2007 dizendo que tudo viria abaixo em um terremoto meia-boca. Foi reconfortante saber que todo o prédio foi reformado e colocado de acordo com as normas atuais de segurança anti-terremoto. Tiveram que expulsar todos os habitantes, está trincando de novo. O prédio inteiro foi levantado 35cm acima do nível original para a instalação dos amortecedores que, esperemos, impedirão o prédio de vir abaixo quando chegar
the big one - uma técnica que parece ser uma antiga especialidade nipônica, de acordo com o filme
Castle under fiery skies.
"The big one" é o grande terremoto que mais ou menos a cada 70 anos acontece na região de Kanto, o canto do Japão onde está Tokyo. O último foi em 1923, o próximo está um pouco atrasado. É algo tão inexorável quanto a próxima crise política argentina, parece que, matematicamente, a chance do big one é 80% maior hoje do que ontem, e será 80% maior amanhã. É reconfortante saber que dormirei sobre amortecedores, portanto.
Omotesando é uma área bastante metida a besta, onde se concentram as grandes grifes internacionais, cuja avenida principal é comparada à Champs Elisées. No começo relutei um pouco em morar em uma região tão "europeizada", mas o bacana de Omotesando, além de estar a apenas 10 minutos de caminhada da repartição, é que por detrás dos grandes prédios e das grandes marcas voltados para as ruas e avenidas principais, há um enorme emaranhado de ruelas e becos cheios de vida e colorido local, lojinhas, restaurantes. É "gaijin-friendly" sem ser algo ostensivamente para gringos, como é a região de Roppongi ou Ginza, onde está a maior parte dos expatriados.
Essa foi minha maior surpresa, a vida na maior megalópole do mundo não é voltada para a rua, é para dentro da quadra. Isso se traduz também no sistema de endereços mais confuso que já vi: os endereços aqui são Cidade -> Distrito -> Bairro -> Choome -> Bashi -> Número do edifício. Mas proporciona também ilhas de vizinhança e convivência, onde tudo é feito a pé em ruelas estreitas, calmas como uma cidade do interior de Minas, de onde mal se pode escutar as principais artérias de trânsito, que por sua vez ficam a míseros metros de distância. Tudo interligado por uma rede de metrô onde uma estação está a 500m de distância uma da outra.
Outras surpresas da paisagem local. Apesar de ser puro concreto pré fabricado, a cidade não é a selva de pedra que eu esperava, é possível ver o céu sempre, os prédios são baixos (coisa de quem espera terremoto). Os carros são enormes, apesar do clichê japonês e da quantidade de ruelas e becos. Tudo é muito novo e moderno, mas acesso à internet não é algo que se vê em toda esquina. Onde estão os robôs? Cadê os lagartos gigantes?!
Em Omotesando estaremos próximos também de Harajuku, que é onde a juventude japonesa passa as tardes desfilando com suas super-produzidas roupas e fantasias de personagens de quadrinhos e TV - talvez a imagem mais difundida do Japão contemporâneo. É um personagem mais bem elaborado que o outro, coisa de doido. Tudo convivendo com os tradicionais kimonos de uma ou outra senhora mais fina. Vou tirar fotos muuuuuito bacanas durante minha estada por aqui - por enquanto quase não tirei fotos, nossas caminhadas são muito mais de reconhecimento do que de observação e turismo. Mas aguardem.
Falando em foto, perdi uma ótima oportunidade outro dia. Entramos por curiosidade em um "
Pachinko", uma casa de jogos eletrônicos de apostas. Coisa de gente pouco decente, nos garantiu depois Suzuki-san, geralmente estabelecimentos controlados pela Yakuza, disse uma colega. Jogando slot-machines (não confundir com as máquinas de pachinko propriamente ditas) estava um jogador de sumô, de kimono, rabinho de cavalo tradicional, com um balde de moedas no colo. Não tirei a câmera do bolso porque o segurança do estabelecimento estava exatamente a meu lado, com cara de poucos amigos, e por receio que o apostador jogasse toda sua massa em minha direção. Acho que foi aí que caiu a ficha - é, eu estou no Japão.
A ficha caiu, mas daí há ainda um loooongo caminho a percorrer até se sentir um pouco acostumado ao lugar. É talvez no supermercado onde fica mais evidente como somos alienígenas por aqui. É uma grande alegria comprar os melhores pedaços de atum da minha vida da prateleirinha de comida pronta do supermercado, mas todo o resto é um desafio, tentar descobrir o que são as coisas sem poder ler ou falar japonês. Nas palavras de L., ficamos olhando para as prateleiras até que o produto comece a falar e nos diga o que ele é. Alguns nos enganaram, compramos detergente líquido em lugar de sabão em pó e ainda não tenho certeza se o desodorante que estou usando é um antitranspirante ou um desinfetante de ambientes, mas estamos nos virando bem em nossas excursões periódicas ao supermercado.
A língua é uma barreira grande, não tem essa de se usar inglês em todos os lados. No máximo, "J-inglish". J-inglish é a versão local do inglês. Como os brasileiros, japoneses tem verdadeiro pânico de fonemas que não incluam vogais - onde os brasileiros metem um "i", os japoneses colocam um "u" ou um "o". Então "Maqui Donaldi" vira "Macu Donarudo". Só que aqui a versão fonetizada é considerada oficial. "Cocktail" é "coketeru", e por aí vai.
Um dos alfabetos silabários (os "kana") é só para escrever palavras estrangeiras, mais de 10% do vocabulário. Sem poder começar as aulas de japonês antes de abril, pegamos o material de nossas míseras 5 aulas de japonês portenho e nos metemos a aprender por conta própria o katakana, o silabário para palavras estrangeiras. Normalmente se aprende o katakana depois do hiragana, o principal silabário - mas de que adianta aprender a ler, se não sabemos o que significa?
O katakana é mais simples do que parece e é muito gratificante poder ler alguma coisa, ainda que seja "koka kora", "kafe" ou "karaoke" (o ka é uma das primeiras sílabas...). Parecemos dois retardados no metrô, na frente de qualquer publicidade, tentando identificar os poucos símbolos que conhecemos. Com o katakana e um pouco de imaginação para entender a transcrição do J-inglish, já é possível ler alguns cardápios até.
Na repartição já comecei a montar uma rotina. Cuidarei basicamente dos mesmos temas que cuidava em Buenos Aires, mas a diferença de perspectiva em um país desenvolvido é grande. Outra mudança importante é que tenho dois (excelentes) funcionários à minha disposição, um verdadeiro luxo. A repartição fica em um prédio do Rui Ohtake que é uma das pérolas arquitetônicas escondidas da cidade. Mas sofre um pouco de síndrome de Brasília, algo fantástico por fora e pouco prático por dentro.
Sobre os japoneses, eles são tão gentis, atenciosos e educados como reza o estereótipo. Estou convencido de que se comunicam em uma frequência inaudível a ouvidos ocidentais porque, por mais caótica que seja a cidade, tudo é silencioso (exceto nos cruzamentos e nas principais artérias de trânsito, mas mesmo nestas as buzinas são raras). Toda essa educação, está bem claro, é também uma barreira, uma forma de manter desconhecidos (estrangeiros ou não) em seu devido lugar. As regras de convivência social se sobrepõem aos demais códigos. Tudo é arrumadinho, limpinho, prático. Podem demorar 4 horas para te vender um celular, mas o fazem com um sorriso tão grande que você fica sem coragem de reclamar. Tanta gentileza gera gentileza, você fica em paz, torna-se uma pessoa melhor, mais preocupada com os que estão ao redor. É agradável, mas não deixa de ser um pouco assustador.
A citação do topo desse posta é de um livrinho bacana que se chama Sanshiroo, um dos clássicos literários japoneses que chegaram ao ocidente, sobre um rapaz que sai do interior para estudar em Tóquio, durante a Era Meiji. A comparação com Sanshiroo é apropriada, também nos podemos considerar "caipiras" chegando a uma metrópole. Também a gente, como Sanshiroo, pode "observar o mundo real, mas não fazer parte dele, [como se nosso mundo] estivesse alinhado ao mundo real em um mesmo plano, mas sem se tocar".
Nos próximos anos, vamos tentar fazer com que esses planos alinhados se toquem.